Oferta das primicias

Tive conhecimento que alguns “pastores” introduziram nas suas igrejas a prática da “oferta das primícias”. Esta oferta é complementar a outras já frequentemente realizadas, como os dízimos, ofertas alçadas, ofertas regulares, promessas de fé e outras ofertas especiais. Segundo os divulgadores desta crendice, os seus seguidores deverão doar integralmente o primeiro salário do ano de trabalho (1/12 da retribuição pecuniaria anual), podendo executar esta “obrigação espiritual” em várias prestações mensais. Esta tentativa de melhorar os rendimentos dos ditos pastores é absolutamente reprovável, abusiva e anti-bíblica.

Usando o mesmo texto bíblico utilizado pelos promotores desta heresia, proponho desmontar esta pratica que tem como objetivo a exploração dos fieis.

 Texto base:

Levitico 23:10 Fala aos filhos de Israel, e dize-lhes: Quando houverdes entrado na terra que eu vos dou, e segardes a sua sega, então trareis ao sacerdote um molho das primícias da vossa sega;

v.11 e ele moverá o molho perante o Senhor, para que sejais aceitos. No dia seguinte ao sábado o sacerdote o moverá.

v.12 E no dia em que moverdes o molho, oferecereis um cordeiro sem defeito, de um ano, em holocausto ao Senhor.

Texto complementar:

Deuteronômio  26:1 Também, quando tiveres entrado na terra que o Senhor teu Deus te dá por herança, e a possuíres, e nela habitares,

v.2 tomarás das primícias de todos os frutos do solo que trouxeres da terra que o senhor teu Deus te dá, e as porás num cesto, e irás ao lugar que o Senhor teu Deus escolher para ali fazer habitar o seu nome.

v.3  E irás ao sacerdote que naqueles dias estiver de serviço, e lhe dirás: Hoje declaro ao Senhor teu Deus que entrei na terra que o senhor com juramento prometeu a nossos pais que nos daria.

v.4 O sacerdote, pois, tomará o cesto da tua mão, e o porá diante do altar do Senhor teu Deus.

Parece-me que o único texto apresentado como base para o ensino da oferta das primícias pelos seus apologistas é Levítico 23:10-12 supra mencionado. Dizem as regras da Hermenêutica (a ciência que nos ensina a bem estudar a Bíblia) que nunca se deve criar uma doutrina baseados num único versículo da Palavra de Deus. Deve haver um largo apoio de vários textos, tanto do Antigo, como do Novo Testamento. Outra regra hermenêutica importante é que nunca se deve tirar um texto fora do contexto a fim de se criar um pretexto. Finalmente uma doutrina só pode ser considerada como tal se tiver o testemunho do espírito da Palavra ( a letra mata mas o espírito vivifica).

Se o texto de Levítico 23 é a base desta “doutrina” vamos então analisar o mesmo:

Lev. 23:10 “Quando entrares na Terra que vos dou…”

Antes de mais, precisamos de entender que este mandamento foi para um povo específico – o povo de Israel – num tempo específico – ao entrar na Terra Prometida – Canaã.

Querer intrometer este ensino na prática da Igreja é forçado e abusivo. Para isso precisaríamos também de ensinar a “não usar vestes de dois tipos de tecidos diferentes” (Lev.19:19) e dizer aos irmãos para “não cortarem o cabelo em redondo, nem danificarem a ponta da barba.” (Lev.19:27) visto fazerem parte do mesmo texto e dentro do mesmo contexto.

” e fizeres nela a ceifa…”

A oferta das primícias não era para “libertar o poder de Deus” isto é, não era a oferta que fazia a colheita acontecer, mas a oferta era para depois da ceifa, uma consequência desta. A origem da benção está em Deus. Ele é o causador da benção, e não nós! O Seu favor na nossa vida não depende de “fazer coisas certas” ou “não fazer coisas erradas”, mas depende totalmente da Sua Graça, do Seu favor completamente imerecido.

Ouvimos frequentemente dizer: “Para colher, deve dar a Deus o seu melhor!”, mas o que a Bíblia nos ensina é o oposto, deveríamos dizer “porque Deus me dá o Seu melhor, eu posso colher, e assim, posso dar!”. Ele é a fonte, o providenciador, a origem de todo o bem (Tiago 1:17; 1ª Tim. 6:17b; Rom. 11:35).

“… então trareis ao sacerdote um molho das primícias da vossa sega”

Veja a proporção pedida por Deus: um molho, um feixe no meio de tantos que foram colhidos. Não um salário de 12, 1/12 da colheita, o que seria correspondente a dizer que em 12 hectares de terreno ceifado, um hectare seria a oferta de primícias. Outro exemplo, em 1200 Kg de trigo, 100 Kg seriam exigidos por Deus como oferta. Não! O que foi pedido aos israelitas foi apenas um molho do total da ceifa, como oferta simbólica do reconhecimento a Deus pelo bem que lhes fez e para que fossem aceitos na sua nova possessão – Canaã.

Gostaria de chamar a sua atenção para a relação existente entre a oferta do primeiro molho da colheita e o cordeiro sem defeito oferecido em holocausto na mesma ocasião (v.12).

Esta oferta fala-nos de Cristo “as primícias entre aqueles que dormiram…” (1ª Cor. 15:19-23). Tudo no Antigo Testamento são sombras de coisas futuras (Col.2:17) apontando para o seu cumprimento em Cristo. Ele, Jesus, é o primogénito (as primícias) entre os mortos a ressuscitar para a salvação eterna. Ele é o primeiro molho de uma grande ceifa da qual, nós, os salvos pela fé, fazemos parte.

Conclusão:

O uso do texto de Levítico 23.9,10 para a extorsão de ofertas suplementares é abusivo e sem fundamento contextual na Nova Aliança (Novo Testamento), Expressões como: “liberte o fluir sobrenatural das bênçãos na sua vida” e “liberte a mão abençoadora de Deus na sua vida” são heresias que colocam o Homem como causador das bênçãos, despoletadores da resposta de um deus que parece estar de mãos amarradas, esperando a iniciativa do crente para se libertar e agir. Parece que o facto de “não se obter resultados” tem a ver, erradamente,  com o que o cristão “faz de errado” ou “não faz certo”.

A posição bíblica certa para que o filho de Deus receba as Suas bênçãos é o agradecimento, o reconhecimento da Graça divina. O crente não é o dador, é o recetor!

Precisamos de estar atentos à manipulação da Palavra de Deus que pretende nos levar a uma obediência inquestionável da mesma. Por outro lado, não devemos deixar que estes abusos nos privem de ver a verdade bíblica que diz que “Deus ama ao que dá com alegria” (2ª Cor. 9:7b).

Sobre António Braga

Residência actual: Luxemburgo. Nacionalidade portuguesa. Casado com Lídia Maria e pai de quatro lindos filhos (Carina, Ruben, Ricardo e Joana). Avô da Noémi e do Julien. Formação académica: Licenciando em Ciências Sociais; Diploma em Teologia e Educação Cristã. Ex-Pastor evangélico, Ex-evangélico. Trabalhando actualmente para o Serviço Veterinário do Ministério da Agricultura do Luxemburgo. Línguas faladas fluentemente: português, inglês, francês.
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